segunda-feira, 13 de outubro de 2014

O comboio e o funil - um exercício de adequação

Vasco Oliveira:
Núpcias [BRUTO]
(diálogo)

Ele olhou-me fundo e disse:
– Quem me dera que tu existisses.
– Como assim?
(Vasco)
– Que existisses… Que lavasses a minha alma que tão magoada está.
– Sinto-te, como dizê-lo… Metafísico. Perdeste a memória dos nossos primeiros beijos?
(André)
– Não a perdi porque nunca a tive… nunca me beijaste, não te lembras?
– Lembro-me do que não vivemos.
(Miguel)
– Talvez nós dois não tenhamos existido, nunca.
– Andávamos em caminhos opostos?
(Diana)
– Não sei, não sei que caminho tomaste enfim, se alguma vez viste as minhas pegadas.
– Não costumo olhar para trás, e à minha frente nada havia.
(Catarina)
– À minha frente há sempre o nada do por realizar e tu, meu amor que não foste, amor de outros como eu que não eu, tu não estiveste ainda nunca à minha beira “como a esfera do cântico dos cânticos”.
(João Ferreira)
– Por favor, dá-me uma oportunidade, pois os meus sentimentos por ti são mesmo verdadeiros. Estou a ser sincero.
– Não sei, são tantas as minhas dúvidas!... Vou pensar!
(Margarida)
– Pensa bem pois o sentimento mudo e o meu muda tão rapidamente.
(Nat Naree)
– Deixa-te dessas pressas loucas, sem sentido e nefastas.
(Carla)
– Não penses, não esperes, não hesites, não negues o que sei que sentes, é isso que vai importar sempre, quer vás, quer fiques… O que sentes, o que sentes.
– Não, desculpa… Já passou demasiado tempo, aconteceu demasiada merda, perdemo-nos. É tão tarde para existirmos… Somos restos de gente, restos de um amor que foi e não volta. Perdemo-nos, nós perdemo-nos.
(Vasco)


FIM


TEXTO EM BRUTO
(André de Medeiros Palmeiro)

Três horas da tarde. Chovia. A calçada resvaladia atormentava os transeuntes. Rita espreitava os bonecos desarticulados de uma montra de loja dos trezentos.
À espreita, estava um porquinho mealheiro. Tão vazio, tão triste. Ela olha-o descrente na vida, no amor, no dinheiro. Leva a mão à mala e nem um cêntimo que lhe sirva.
Entretanto, também uma boneca insuflável repara em Rita e no porquinho e aconchega este último bem junto de si. Queria a boneca ficar com o porquinho e roubá-lo a ela, pensou Rita de imediato. Enquanto pensava, remexia os bolsos na procura de um euro que fosse para o levar com ela.
Mas nada feito, parecia que os bolsos tinham buracos. Olhou em volta; ninguém na rua. Deitou um olho à loja e reparou que só estava um rapazinho magro atrás do balcão. Não será por um euro perdido que morrerá de fome. Resolveu arriscar.
Entrou de mansinho na loja, como quem interroga os próprios passos. O rapazinho magro finge não a ver, os jeans curtos e as pernas bronzeadas acelerando-lhe os batimentos cardíacos. Titubeante, acerca-se do porquinho mealheiro com papel de embrulho nas mãos. Rita sorri-lhe. O rapazinho magro embrulha o porquinho e entrega-o a Rita. Um grupo de rapazolas invade a loja numa berraria desenfreada enquanto, lá fora, um arco-íris radioso se escancara no horizonte.

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